MATERNIDADE SEM CULPA
Todos nós sabemos que errar é humano – errar é uma característica do ser humano!
Então, por que será que somos tão
exigentes com as mães? Por que insistimos em cobrar das mulheres que são mães
uma performance inatingível? Na verdade, toda mulher quando se torna mãe já se
incumbe de se atribuir uma série de exigências sobre seu próprio comportamento
e, desta forma, não precisa de ninguém além dela mesma para lhe impor cobranças
e padrões a serem seguidos.
Desde o momento em que se percebe
grávida, a mulher se transforma. Começando pelo seu corpo, que passa a
apresentar mudanças quase que diárias, a gestação de um filho provoca impactos
em todas as dimensões da vida da futura mãe, e as emoções passam a exercer um
domínio ainda mais intenso sobre suas atitudes. Para muitas, a alegria de poder
gerar um filho é compreendida como um privilégio, uma dádiva divina se
materializando através dela. Para outras nem tudo são flores, ainda que já
tenha decidido que a maternidade seria uma escolha em algum momento.
Independente de qual seja o cenário que recepciona uma gravidez, é inegável que
muitas pressões e cobranças também começam a surgir.
Eu ousaria dizer que, ainda nos
tempos modernos, a maternidade é algo esperado para as mulheres e entendido
como um instinto que deve ser seguido. Sendo assim, muito antes de se
concretizar, a maternidade já se apresenta como algo inexorável e da qual não
se pode fugir. Existe alguma dúvida de que algo que nos chega desta forma,
carregue em si o peso característico da imposição? Mesmo diante dos discursos
vigentes há algumas décadas sobre a liberdade de decisão da mulher, aliado ao
mote atual que diz “meu corpo, minhas regras”, declarar sua decisão consciente
por não ter filhos ainda desperta olhares desconfiados e comentários que
desqualificam essa mulher como alguém que está negando aquilo que a natureza
espera dela. Portanto, apesar de toda a modernidade que experimentamos em nossa
sociedade, eu me pergunto: será que as mulheres que decidem ter filhos o fazem
em alinhamento com seu próprio desejo? Ou será que esta é mais uma questão que
nos atravessa e já vem autodeterminada sem que sequer nos permitamos
questionar?
Comumente ouvimos a frase “nasce
uma mãe e nasce, junto, uma culpa”. Quando me atento para todos os aspectos
sociais que permeiam a maternidade, compreendo facilmente porque a mulher que
se torna mãe é a primeira a se culpabilizar por toda possibilidade de falha que
ela possa vir a cometer. Os meios de comunicação são implacáveis ao lembrar as
mães sobre a grandeza de sua missão, sobre a sua importância para a manutenção
da espécie e, desta forma, indiretamente derrama sobre elas o peso da
infalibilidade. Mesmo sabendo que os erros ajudam no processo de crescimento e
evolução humana, as expectativas culturalmente disseminadas são no sentido de
que um filho possa ser gerado, parido e cuidado com o mínimo possível de
intercorrências.
Mas.. onde está a mulher que havia ali, antes de se tornar mãe?
Aquela mulher que tem seus sonhos, projetos,
relacionamentos, lugares, compromissos, vivências, desejos? Para onde ela vai
quando a vinda de um filho é anunciada? A vida de uma mulher deve parar para
que ela traga à luz uma outra vida? Qualquer pessoa disposta a um mínimo de
questionamento irá entender que a mulher por detrás da mãe não deixa de
existir, que ela apenas dá um passo para traz e se coloca em segundo plano
enquanto se ocupa de seu projeto mais audacioso: gerar e trazer à luz um filho
seu. No entanto, as exigências físicas,
emocionais e sociais são tão intensas que é muito comum a sensação de perda de
identidade, o sentimento de não se saber mais quem se é, como será a vida
quando se voltar da maternidade com aquele pedacinho de amor nos braços – mas
sem as enfermeiras e toda a segurança que estar protegida num hospital pode
trazer.
"Isso é só uma fase, e logo vai passar."
Meu filho tinha poucos dias de
vida quando uma conhecida minha me falou palavras libertadoras para responder a
uma pergunta que ela mesma me fez. A pergunta foi: “você deve estar pensando
que sua vida agora é só fralda e mamadeira, né?”. Eu me lembro de olhar para
ela, bastante surpresa, e dizer: “e não é não?”. Ela, então, apesar de ser bem
mais jovem que eu e ter sido mãe alguns anos antes e sem qualquer planejamento,
me disse tudo o que eu precisava ouvir naquele momento: “não! Isso é só uma
fase e logo vai passar”. Por mais óbvio que isso possa parecer, eu não tinha
tido a tranquilidade para tirar essa conclusão sozinha. Eu fui uma dessas mães
com uma carreira em andamento, o relógio biológico já se fazendo notar, e que
quando se viu grávida, apesar da imensa alegria que sentiu, viu suas
referências se esvaindo.
Em relação às mulheres que tem
esse perfil que relatei acima, eu acredito que a cobrança ainda é maior.
Afinal, ter nível superior de escolaridade, desenvoltura profissional e social,
faz com que as pessoas olhem para elas como alguém que tem menos chance de
cometer erros. E assim, toda a construção pessoal que se faz acaba por se
tornar mais um ponto de pressão sobre si, mais uma cobrança que, como eu disse,
já se inicia na cabeça da própria mulher. Quanto mais títulos e símbolos de
sucesso se alcança, mais expectativas se cria sobre si e nos outros, fazendo
com que todas aquelas inseguranças e dificuldades iniciais, tão normais e
esperadas para qualquer mãe, passem a ser vivenciadas como o fim do mundo.
Lidar com a própria falibilidade, também se aprende com as falhas da mãe.
E onde fica, então, o caráter
pedagógico do erro? Do mesmo modo que sabemos que errar é humano, não sabemos
que a partir dele podemos adquirir aprendizado? As ciências humanas já nos
asseguram isso, e a observação do próprio desenvolvimento físico e emocional
das crianças também nos permitem testemunhar que é a partir do tombo que elas
aprendem a se levantar e a dar os primeiros passos. Se os filhos não tiverem,
em seu processo educacional, demonstrações de que todo ser humano é passível de
falha, como irão se acolher quando não forem perfeitos e como irão lidar com a
falibilidade dos outros?
Pensando assim, quem sabe não
seja mais sensato e real, neste mês das mães, deixar um pouco de lado a
exaltação deste amor incondicional que fantasiosamente se homenageia e
passarmos a acolher e apoiar, de fato, as mães, em suas dificuldades,
limitações e humanidades? Não seria um grande presente dizer a elas que
entendemos que este é um papel social extremamente exigente e que elas tem todo
o direito a se sentirem impotentes, cansadas e até desmotivadas com a
maternidade? Esta seria uma grande contribuição para a redução de culpas e,
consequentemente, da autopunição que muitas mães se infringem, pois, como
sabemos, uma mulher não atinge a divindade ao se tornar mãe, e se todas as
dores que ela carrega não forem bem elaboradas, podem trazer consequências
indesejadas àqueles a quem dela se espera cuidado e proteção.
Belo Horizonte, 02
de maio de 2022.
*Imagem criada pelo Departamento de Comunicações da AOPMBM
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